sábado, 30 de outubro de 2010

O livro dos Saltimbancos - Parte I



Tudo se passa no início do século XX. Carlito e sua família mudaram recentemente para Olinda, em um bairro histórico, ardilosamente cobiçado, mas não pelo pequeno Carlos.  Era uma casa estilo colonial, uma das muitas que já observara, Branco-pálida com detalhes em tons anêmicos e deprimentes de vermelho. A vida de pesquisador e pai solteiro no Brasil era dura. O Sr.Rocha não tinha outras opções além de submeter-se a enfadonha vida de andarilho. Tinha voltado recentemente de Portugal, com mais uma leva de livros raros em galego-português.  Para cuidar de Carlito e do bebê Sofia, o Sr.Rocha havia  contratado, a duras penas, uma ama que tinha por nome Glória, negra e ex-escrava, que aprendera na senzala como ninar crianças. Carlos passava as tardes brincando com suas réplicas de carroças sobre a terra argiloso do quintal ou infortunando  o bebê, deixando  Dona Glória  livre em seus afazeres na cozinha.

Definhava em mais uma tarde mórbida e abafada quando ouviu cordas perturbarem a estabilidade do ar, produzindo uma música leve e cortante. Vinha da sala de leitura. Receoso, o garoto se dirigiu lentamente em direção ao cômodo, deixando Sofia gritar afobada no berço ‘Carguito! Carguito!’. O som se diluía no espaço e se propagava com maior intensidade, até que, sem prelúdio, o sussurro rasteiro de um instrumento de sopro acompanhou a música inicial. Arfando, Carlito espiou entre a porta entreaberta, onde nada se revelou. Entrou na sala, controlando os murmúrios dos passos. Dirigiu-se a um monte de livros enrugadas e precariamente preservados que estavam sobre uma caixa corpulenta. A música vinha caramente de lá, e agora já podia distinguir o bater abafado e fraco da repercussão. Foi retirando livro por livro, com os ouvidos atentos, despejando-os sobre o tapete submerso em poeira. Quase no fim da pilha, ele encontrou o gênesis do misterioso recital.

Era um livro corpulento, com capa rígida de coro desbotado, páginas amarelas como folhagem outonal. Por um instante ele deduziu tratar-se de um livro escrito por monges da península ibérica, mas então espiou a folha de contracapa onde letras garrafais manuais diziam “O livro dos Saltimbancos por Apolo, o Coringa”. O som cessou assim que passou para a página seguinte onde um texto escrito a mão estava acompanhada por uma pintura desbotada, com cores mortas onde repousava a imagem de uma terra batida e lisa, sem vida. Por um momento chegou a supor que deveria haver figuras de pessoas sobre aquele campo. Era quase certo, ele pressentia que solas de pés haviam repousados sobre a terra solitária. Deu uma olhada de relance nas outras páginas. Apenas figuras com imagem de fundo de torres e muralhas medievais, praças e estradas de pedra sombreadas por floresta densas. Nada de pessoas ou animais. Retornou para os escritos iniciais e passou a ler, buscando por respostas. Seguiu a leitura de olhos assombrados e esguios: 


“Tal como tecelãs imortalizam grandes feitos sob os tecidos de tapeçarias, eu ouso moldar os feitos dos artistas que, de posse de imenso gozo de dons, alimentaram almas sombrias com distrações singelas, de coração aberto. Aguardo para que esses sejam andarilhos do tempo, nômades das eras. Que as letras e as pinturas  aprisionem o espíritos dos saltimbancos para uma liberdade futura, quem dê eterna”.


Terminadas essas palavras, Carlito sentiu sobre os ombros o farfalhar de dedos sobre cordas e o som do sopro percorrendo a flauta. Enquanto seu coração experimentava ao mesmo tempo um assombro e um despertar de compreensão, virou-se, arfando, tamanha revelação macabra. Havia encontrado os habitantes das gravuras.


Texto baseado no quadro 
'Os saltimbancos' de Pablo Picasso.

2 comentários:

  1. Confesso que grande parte do tempo em que estive em seu blog dispensei admirando esta imagem/quadro. Gostei muito dele.

    Boa semana amigo!

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