sábado, 30 de outubro de 2010

O livro dos Saltimbancos - Parte I



Tudo se passa no início do século XX. Carlito e sua família mudaram recentemente para Olinda, em um bairro histórico, ardilosamente cobiçado, mas não pelo pequeno Carlos.  Era uma casa estilo colonial, uma das muitas que já observara, Branco-pálida com detalhes em tons anêmicos e deprimentes de vermelho. A vida de pesquisador e pai solteiro no Brasil era dura. O Sr.Rocha não tinha outras opções além de submeter-se a enfadonha vida de andarilho. Tinha voltado recentemente de Portugal, com mais uma leva de livros raros em galego-português.  Para cuidar de Carlito e do bebê Sofia, o Sr.Rocha havia  contratado, a duras penas, uma ama que tinha por nome Glória, negra e ex-escrava, que aprendera na senzala como ninar crianças. Carlos passava as tardes brincando com suas réplicas de carroças sobre a terra argiloso do quintal ou infortunando  o bebê, deixando  Dona Glória  livre em seus afazeres na cozinha.

Definhava em mais uma tarde mórbida e abafada quando ouviu cordas perturbarem a estabilidade do ar, produzindo uma música leve e cortante. Vinha da sala de leitura. Receoso, o garoto se dirigiu lentamente em direção ao cômodo, deixando Sofia gritar afobada no berço ‘Carguito! Carguito!’. O som se diluía no espaço e se propagava com maior intensidade, até que, sem prelúdio, o sussurro rasteiro de um instrumento de sopro acompanhou a música inicial. Arfando, Carlito espiou entre a porta entreaberta, onde nada se revelou. Entrou na sala, controlando os murmúrios dos passos. Dirigiu-se a um monte de livros enrugadas e precariamente preservados que estavam sobre uma caixa corpulenta. A música vinha caramente de lá, e agora já podia distinguir o bater abafado e fraco da repercussão. Foi retirando livro por livro, com os ouvidos atentos, despejando-os sobre o tapete submerso em poeira. Quase no fim da pilha, ele encontrou o gênesis do misterioso recital.

Era um livro corpulento, com capa rígida de coro desbotado, páginas amarelas como folhagem outonal. Por um instante ele deduziu tratar-se de um livro escrito por monges da península ibérica, mas então espiou a folha de contracapa onde letras garrafais manuais diziam “O livro dos Saltimbancos por Apolo, o Coringa”. O som cessou assim que passou para a página seguinte onde um texto escrito a mão estava acompanhada por uma pintura desbotada, com cores mortas onde repousava a imagem de uma terra batida e lisa, sem vida. Por um momento chegou a supor que deveria haver figuras de pessoas sobre aquele campo. Era quase certo, ele pressentia que solas de pés haviam repousados sobre a terra solitária. Deu uma olhada de relance nas outras páginas. Apenas figuras com imagem de fundo de torres e muralhas medievais, praças e estradas de pedra sombreadas por floresta densas. Nada de pessoas ou animais. Retornou para os escritos iniciais e passou a ler, buscando por respostas. Seguiu a leitura de olhos assombrados e esguios: 


“Tal como tecelãs imortalizam grandes feitos sob os tecidos de tapeçarias, eu ouso moldar os feitos dos artistas que, de posse de imenso gozo de dons, alimentaram almas sombrias com distrações singelas, de coração aberto. Aguardo para que esses sejam andarilhos do tempo, nômades das eras. Que as letras e as pinturas  aprisionem o espíritos dos saltimbancos para uma liberdade futura, quem dê eterna”.


Terminadas essas palavras, Carlito sentiu sobre os ombros o farfalhar de dedos sobre cordas e o som do sopro percorrendo a flauta. Enquanto seu coração experimentava ao mesmo tempo um assombro e um despertar de compreensão, virou-se, arfando, tamanha revelação macabra. Havia encontrado os habitantes das gravuras.


Texto baseado no quadro 
'Os saltimbancos' de Pablo Picasso.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Feliz Dia Nacional do livro!

 "Entre palavras e combinações de palavras, circulamos, vivemos, morremos, e palavras somos"
Drummond de Andrade

"informou-me que possuía 'As reinações de Narizinho', de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.[...]
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."
"Felicidade Clandestina'' de Clarice Lispector



Em homenagem a esses nossos amigos
que preservam nossa cultura e identidade

O país onde políticos 'lavam roupa suja' na lavanderia mesmo

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Contra a arrogância - compartilhamento da aula de literatura...


"Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguma voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que confessasse não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o ideal, se o ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos.

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta Terra?"

Álvares de Campos (Fernando Pessoa) 
Clipe sobre realização social com fracasso interior

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A goiabeira


Era uma goiabeira antiga, exuberante e altiva. Ficava no quintal da casa dos avós de alguns de nós – embora que para toda criança velhinhos simpáticos são sempre “vó e vô”. Achava-se entre os arbustos floridos e dois muros que se encontravam juntos em ângulo reto. Seu tronco se curvava logo na base, como uma saudação solene, e então se erguia reto até desdobrar em espessos galhos, com folhas verdes e cheirosas, fartos de fruto quase todo o ano, com exceção do curto inverno, entre junho e setembro. Esbanjava simpatia, acolhendo os mais velhos em sua penumbra, servindo de descanso pra os galos, suporte de gaiolas e firmamento para ninhos de canários, sabiás ou galos-de-campina. Entretanto, ninguém usufruía mais de toda a cordialidade e praticidade da árvore do que nós.

Netos, filhos de conhecidos e sobrinhos – de todos os graus. As almas infantis eram as que extraiam o melhor que a acolhedora e velha goiabeira poderia oferecer. Ao seu derredor nos reuníamos e brincávamos de todas essas lorotas juvenis. As garotas lhe faziam de moradia e os rapazes apanhavam as pipas que seus elevados galhos extraviavam em pleno voo.

Girávamos, dando piruetas das mais audaciosas nos braços mais grossos da árvore, levando não raras vezes a pequenas quedas, logo esquecidas. Doravante, quando nos tornamos mais férteis e errantes no campo da imaginação, o encosto de seu tronco e ramos se transfigurou em um berço de singelas histórias e lendas.

Não durou muito para que a paixão pelas narrativas tomasse conta de nós e nos fizesse arquitetos das palavras. Íamos de contos de fadas bobos, de foco estritamente descritivo – ao modo dos irmãos Grimm – a contos mais bem elaborados e trabalhados, que ganhavam especial atenção, pois de início esses eram raros. Nas noites cavernosas de luar ardente e cativador, nos distraiamos com contos de terror, de detalhes grotescamente ampliados e impactantes. Enquanto se narrava a estória, os galhos rangiam abraçados pela brisa noturna  e a lua distribuía feches de luz pálida entre as folhagens volumosas.Em um compartilhamento de anseios e fobias, seguíamos a noite, tal qual Mary Shelley, a beira do lago genebrês, narrara a estória do Dr. Frankenstein para distrair seus amigos.
Sobre periódicas mordidas em goiabas verdes e suculentas, tal qual o menino lobato, entrávamos em deleite diante de narrativas cômicas, verdadeiras tragédias gregas, e dos poemas de último instante, tentando-se buscar o espírito shakespeariano; O máximo que conseguimos alcançar foram rimas primitivas e pavorosas de conteúdo confuso e por vezes constrangedor. Havia momentos em que o clima se tornava tenso, a goiabeira não fazia sombras e a narrativa saia como gemidos ininteligíveis e palavras desconexas e incoerentes.

Então seguíamos para nosso refúgio em uma sala, onde, como numa caixa preta fechada, a luz que se esgueirava pelas frestas do telhado de barro galgava na parede o reflexo invertido dos galhos mais altos. Daí a fartura era de bolo de fubá, milho, cenoura ou mandioca, canjica, biscoito e bolinhos de forma além de doces diversos onde se incluía, é claro, a goiabada. E, quando o ambiente se tornava propício para a exploração do inconsciente claricense, em bando ocorria o regresso ao conforto do fraternal do fabuloso vegetal.

Os anos passavam enquanto o tempo se refletia nas faces das crianças, que agora se enamoravam,seguiam carreiras e avançavam nos estudos, se familiarizando com a realidade. O tempo, carrasco nunca vacilante, também aprontou das suas com a velha goiabeira, que perdia o vigor, a frutividade, a coloração verde-viva e os ramos firmes. Padecia com o tronco desfalecido, folhagem rala e seca, creme-avermelhadas e já não dava mais frutos. Aos poucos não servia mais de abrigo para passarinhos, e os tatus habitavam sobre suas raízes quebradiças.

E de forma lenta e dolorosa a árvore morreu e seu tronco foi trabalhosamente desgastado por pequenos animais, até mais nada resta alem de terra sem vida. E, embora o tempo tenha surrupiado nosso recanto de suspiros e devaneios, nossas almas e nossas memórias insistem em preservar o espírito de vivacidade inspirador do ‘pé de goiaba’. A goiabeira tinha, em tempos de formosura, abraçado nossa imaginação com seus galhos malandros e sorrateiros.
Desenho de Geraldo Roberto da Silva
Saudades da infância...
Vó Lia e Vô David, amo vocês
In memória do 'pé de goiaba' e da infância querida

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Quando bate aquela angústia...


"Quando me vi assim, desprovido de qualquer possibilidade de auxílio humano, incapaz de tentar algo para me salvar, pensei no auxílio do céu. As lembranças de minha infância, de minha mãe, que só conhecera quando era muito pequeno, voltaram-me à mente. Recorri à oração, embora tivesse pouco direito de ser ouvido por Deus, ao qual me dirigia tão tarde, e implorei com fervor. O recurso à providência acalmou-me um pouco, e consegui concentrar todas as forças da inteligência em minha situação. Tinha víveres para três dias, e meu cantil estava cheio. No entanto, não podia ficar sozinho por mais tempo do que isso."
                   
 "Viagem ao Centro da Terra" de Júlio Verne

Às vezes, aos sermos privados das possibilidades lógicas de escape, encontramo-nos em tal desespero que enfim lembramos da chamada ajuda divina. Esse ser superior do qual, ainda jovens, ouvimos tanto falar como criador e ajudador do homem. Então os anos passam e chegamos a nos virar por conta própria, por vezes esquecendo, e por outras negando tal amigo de infância. Entretanto, Doravante esbarramos em situações em que apenas Ele pode vir com amparo. Sendo esse um bom amigo, nos estende a mão, mas então, quando as coisas entram nos eixos, esquecemos Dele novamente...
Michelangelo, nos seus momentos finais de vida, escreveu suas últimas palavras:
"Meus pensamentos, outrora ligeiros em torno de coisas prejudiciais para entender, que são agora? Em vão suspiro pela ajuda da pintura e da escultura, meu único refúgio é aquele amor divino, que da cruz estendeu seus braços para me salvar."
Alguém pode disser que se trata de um surto de desespero em um velho com o pé na cova, enquanto outros enxergariam isso como um estalo de compreensão. Mas o que vale a pena ressaltar é que, em muitos casos, as coisas mais 'espúrias e singularmente extraordinárias são as mais simples e verdadeiras' (Flávio Alencar)
 

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Mais um prêmio para J.K.Rowling


A autora britânica J.K. Rowling, criadora da série de livros Harry Potter, recebeu no dia 19 de outubro o prêmio Hans Christian Andersen de Literatura, em Odense, na Dinamarca.
A autora foi a primeira a receber o prêmio, além de ganhar uma escultura de bronze de O Patinho Feio. O prêmio é dado a pessoas que, assim como Andersen, tornaram a literatura mais mágica e encantadora. Hans Andersen é um escritor dinamarquês nascido em 1805 que escreveu cerca de 160 contos de fadas e poemas até a sua morte em 1875.
Rowling ainda disse que o autor de clássicos como “A Pequena Sereia” e “O Patinho Feio” havia ‘criado personagens eternos e indestrutíveis’ e que Anderson reconheceu que obras para crianças não devem ser ‘brandas ou sentimentais ou ainda desprovidas de desafios’. É um marco nas obras da autora a abordagem de sentimentos considerados 'fortes demais para criança'.
A série de 'Harry Potter' é repleta de referências em relação à morte, mas também ao poder protetor e restaurador do amor, esse único que pode vencer até a maldição da morte. A autora confessou ter estado em um momento de depressão quando começou o livro. Era uma mãe solteira que passava por dificuldades financeiras. Em entrevista à apresentadora Oprah Winfrey, em sua casa em Edimburgo, Escócia, J.K.Rowling diz que no dia 11 de setembro de 2001, recebeu uma mensagem de seu editor onde, em resposta a uma discussão, ele critica os que 'dizem que não devemos ensinar as crianças sobre o mal'.
Além dos sete livros de  “Harry Potter”, a autora também escreveu mais dois livros relacionados à série e o magnífico “Os Contos de Beedle, o Bardo”, repleto de referências à série, mas com temáticas próprias, como a fraternidade ou  a caça as bruxas.

 
"Nossa única defesa contra a morte é o amor"
José Saramago

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O romantismo sombrio de Lord Byron


Os homens, afinal, vieram me libertar;
  Não perguntei por quê, nem quis saber onde;
Enfim, para mim, era tudo a mesma coisa,
  Agrilhoado ou livre, igualmente,
Eu aprendera a amar a desesperança

O prisioneiro de Chillon, de Lord Byron

Em 1530, o patriota genebrês François Bonivard foi preso em uma masmorra no castelo de Chillon, localizado na beira do lago Lémam, Suíça. O poema de Byron - originalmente chamado de “Le Prisonnier de Chillon” - narra os seis anos de martírio de François Bonivard, com um enfoque psicológico onde as sensações do personagem são descaradamente reveladas. Esse poema é hoje um dos mais apreciados trabalhos da Segunda geração do romantismo inglês.
Se você leu meus antigos posts, já deve ter reparado que o Castelo de Chillon é o mesmo castelo onde Mary Shelley, na presença do próprio Lord Byron, narrou a estória de “Frankenstein”. Ambos se tornaram símbolo marco do romantismo gótico inglês. Além do “Prisioneiro de Chillon”, Byron também escreveu a famosa obra “Don Juan”,uma antiga lenda sobre um “playboy” do passado. O que diferenciou o romance de Byron para outros já escritos sobre a lenda, foi um Don Juan menos sedutor e mais uma vítima da sedução feminina. Don Juan foi também o nome do barco do poeta Percy Bysshe Shelley, amigo de Byron e esposo de Mary Shelley.
O trabalho de Lord Byron é marcado por um enfoque de sensações e sentimentos, onde as ações ficam de lado e a análise psicológica ganha destaque. Ele também se utiliza de ambientes úmidos e sombrios e perspectivas frias, deprimentes e mórbidas. Era um carrasco das almas.

Na quietude em que aprendemos a residir,
Meus grilhões e eu nos tornamos amigos,
Pois uma longa convivência mutua tende
A nos tornar o que realmente somos: ainda que
Tenha recuperado minha enfadonha liberdade.

Lord Byron
O castelo de Chillon, lago lémam, Suiça

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Felicidade Clandestina – Paternidade


"Às vezes a ânsia pelo amor é tão desesperadora que se acaba buscando a satisfação mesmo diante do que se sabe ser uma ilusão"

Ele tinha onze anos, como eu. Era gordo e de cabelos castanhos ondulados, olhos negros marcantes e nariz em forma de empada. Convidava-me algumas vezes por semana para se gabar do seu Playstation ou de seus skates. Entretanto seu único pertence que me alimentava da inveja, era o seu pai; Um homem atencioso que, apesar de ter consciência do espírito mesquinho e perverso do filho, ainda lhe oferecia todo o carinho e atenção que se espera de um bom pai. Tinha barbicha serrada como grama recém aparada, cabelos caminhando para o grisalho e porte saudável para sua idade. Diferente do filho não era gordo apesar de possuir desenvolvida massa muscular. Todos os dias em que ficava em sua casa - para servir de alvo de vanglorio para o garoto bolota – ele nos servia sanduíches enquanto compartilhava piadas que escutara na sua lojinha de vidrarias na rua da aurora, no Recife. 

Sentava-se conosco ,quando podia, para nos ajudar a derrotar forças alienígenas ou para sugeri insistentemente brincadeiras mais ativas – mesmo diante dos protestos de seu filho. Tornou-se terrível para mim ter de despedi-me daquele bom homem e voltar para o tormento de meu lar, onde encontraria meu pai rabugento e frio e minha mãe enfadada e depressiva. Ele me vinha em voz autoritária com críticas sobre deveres domésticos não cumpridos ou com ira diante de meu horário para chegar em casa. Eu já começara a adivinhar que ele me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Mas eu andara perdendo as forças para suportar tamanha carga...

No dia seguinte lá estava eu à porta da casa daquele garoto corpulento, com um sorriso e o coração batendo. Encontrava-me disposto a ouvir aquele garoto se exibindo em troca de alguns estantes de atenção e afeto. O trunfo da vez era um colar novo, com pingentes de prata, que estavam em moda. Suspirei por um momento, quando vi aquele homem se aproximar de nós. Ele veio diretamente a mim, acariciou meus cabelos negros desgarrados e deu uma batidinha em meu ombro. Perguntou como eu estava, com voz mansa e acolhedora, e como essa pergunta me vinha raramente. Menti, dizendo que tudo ia bem. Ele esticou o braço e abriu a mão, onde estava um colar de prata. Agradeci estupefato. O bola cheia não parecia ter se agradado de tamanha generosidade de seu pai. No colar havia apenas um pingente, em forma de bicicleta. Entrei então em um verdadeiro estado de felicidade. Passava a noite apreciando aquele objeto, que era um símbolo de uma ligação que eu sentia não ter formado com mais ninguém.  Não era mais um menino com um cordão de prata: era um homem com a sua amante. Tornou-se meu maior pertence.

Certo dia, em uma praçinha, encontrei-me com aquele que me trazia raros momentos felizes. Ele parecia satisfeito ao ver-me, abriu um sorriso acolhedor e me contraiu contra seu peito ao me envolver em seu braço afetivo. Perguntou se eu não queria acompanhá-lo em um passeio. Pegou sua bicicleta, que repousava ali perto. Adorava andar de bicicleta. Ele nos lavava em direção oposta a sua casa. Era um bairro menos movimentado do Recife, com casas precárias e rudimentares. Ele parou diante de uma casinha onde parecia não ter ninguém. Observei as poucas pessoas presentes nos olharem de forma desconfiada. Ele abriu a porta e me pediu para entrar. Em seu interior, a casa não era muito grande, nem apreciável aos olhos, mas era limpa e calma.

-Essa casa é sua Sr... – tentei obter respostas, mas ele permanecia quieto. Disse que iria ao banheiro e, passando pela porta, sumiu e ficou silencioso. Em alguns minutos voltou só de toalha, sentou-se ao meu lado no sofá e acariciou-me. Perguntou se eu queria que ele fosse meu pai. Como teria percebido tal desejo em mim eu não sabia... Talvez fosse evidente. Respondi dizendo que acharia legal. Meu coração pulava inseguro. Ele disse que isso só seria possível se eu concordasse em ficar ali por alguns dias. Suas mãos escorregavam partindo do meu rosto, passando pela minha barriga e então as cochas. Eu disse gagamente que não tinha certeza. Pressionou seu corpo contra o meu. Ele persistiu que eu ficasse e então aceitei...

Na minha ânsia de afeto, eu tentava ignorar as humilhações a que ele me submetia. Tinha consciente de que o que ele fazia comigo não era só repudiável, mas também um crime. Poderia ter escapado, mas simplesmente não o fiz... Para onde eu iria saindo De lá? Para outro tormento em casa? Às vezes a ânsia pelo amor é tão desesperadora que se acaba buscando a satisfação mesmo diante do que se sabe ser uma ilusão. Criava as mais falsas satisfações para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Minha ilusão me dominou de tal forma que por semanas ignorei a situação. Não sei se romperia aquilo por conta própria.

Fui encontrado e o homem foi preso. Pelo que entendi, houve uma denúncia anônima. Teria que reassumir meu antigo carma. Na delegacia, encontrei-me com o garoto gorducho envolvido pelos braços da mãe, chocado. E o pior para esse menino não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada do pai que tinha. A potência de perversidade de seu pai desconhecido parecia chocá-lo. Mirava-o penosamente. Agora sabia que tinha alguém com o qual poderia compartilhar tamanhas desventuras...


 Hoje, decidi doa-me para utilidade pública com um tema marcante. É quase uma crônica baseada em tantas notícias que de tempos vemos na mídia. As vezes sofrer com os outros te deixa mais forte e humano... 
Quero também deixar claro que esse conto possui uma grande contextualidade com o conto
"Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector, grande autora ucraniana 
de infância pernabucana e alma brasileira.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O cativador


“Não passo aos teus olhos de um igual a cem mil outros. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti único no mundo...”


Antoine de Saint-Exupéry em "O pequeno Príncipe"
Além de escritor, ele foi matemático, engenheiro, filósofo e piloto. O pequeno Príncipe foi um marco em sua carreira, mas esse autor francês também teve outras obras como “Terra dos homens” e “Voo noturno”.

“Eis o meu segredo,
É muito simples:
Só se vê bem com o coração.
O essencial
É invisível para os olhos”
Saint-Exupéry

sábado, 9 de outubro de 2010

Ruídos e murmúrios


"Em homenagem à minha terra de Pernambuco"

Era verão na Suíça quando ouvi os primeiros ruídos. Já habitava aquela casa a cerca de dois anos e um bimestre. Era construída por tijolos miúdos e, em algumas partes, como o porão e a sala de estar, possuía detalhes em madeira morfada e áspera. O odor marcante de serragem úmida era um dos poucos detalhes que me davam nostalgia do Recife. Até as águas negras e sombrias dos lagos não aguçavam minha memória em relação á Veneza brasileira; Os rios recifenses tinham pontes e correntezas, e não o caráter mórbido e tedioso dos lagos. 

Em meus devaneios e mergulhos ao subconsciente enxergava como o frio torna a alma humana menos agitada. As montanhas são tão indolentes quanto sem graça. Apenas valiam a pena durante os períodos mais quentes , quando se podia escalá-las e, mesmo assim, a visão não surpreendia tanto. Se não fosse meu trabalho na editora ou meus colegas do curso de especialização, passaria todas as horas do meu dia em momentos indigestos naquela casa fadonha.

Por tudo ser tão inabalavelmente silencioso é que os sons me chamaram tanta atenção. Vinham de baixo do assoalho. Aparentemente no porão. Há tempos não ia lá. Lembro-me de como tropecei na escadaria nos primeiros dias, quando deixei cair as mangas que a Joana tinha me dado antes de viajar. Eu e a Joana nos encontramos pela última vez sobre a sombra daquela mesma mangueira de nossa infância. Ela tinha as ventas vermelhas e os olhos bem sombrios e lacrimosos.
- É pra você... mainha pediu para que meu irmão viesse pegar elas aqui hoje pela manhã.– Disse Joana, com seu jeito singelo e juvenil que tanto me cativava. Estendia uma sacola cheia de manga-espada. O Sol apalpava seu corpo sobre o vestido de algodão. Nossa! Como o Sol intenso chegou a me dar saudades...
- Espero ter uma oportunidade de chegar a te ver um pouco antes do que ando planejando. Teria de fazer algumas economias, mas acho que consigo. – Tentei consolar a angustia que sua alma tanto evidenciava. Quem dera tivesse conseguido.
 
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Desci para o porão, que exalava um cheiro podre de madeira antiga e úmida. O lugar possuía ainda alguns vestígios dos seus antigos donos. Um sofá encardido, um armário de aparência medieval e outros objetos de menor destaque: lustres quebrados, caixas, tapetes acabados e outros. Critiquei minha própria incompetência. Era evidente que ratos ali habitavam. Doravante, meses se passaram e as ratoeiras, os venenos de rato e a naftalina acabaram sendo dinheiro jogado fora. Os ruídos se intensificavam. Minha mente se corroia diante de tal mistério. Suspirei. Teria de fazer uma faxina.

Muita poeira, pó e teias de aranha. Era poeira demais para um lugar como a Suíça. Bati a vassoura nos tapetes, encaixotei todo o lixo, separei o que poderia ser revendido. Faltava retirar o armário. Com um impulso insistente conseguir remover o objeto para o mais próximo possível da escada. Voltei-me para o piso de madeira maltratada e fiquei assombrado.

Lágrimas percorreram minha face. Deixei-me cair sobre os joelhos. Como poderia ter permitido que ela morresse? Por que não fui visitá-la como prometi? Retirei as lágrimas com o dorso da mão e me aproximei mais. A pequena mangueira devia ter gozado das condições necessárias para o seu crescimento naquele buraco sobre o chão. Enquanto crescia, empurrava a madeira fina que a sufocava, provocando ruídos que se destacavam sobre o silêncio. Tinha crescido muito rápido para um ambiente tão frio. Talvez o porão fechado tenha servido como uma estufa.

A plantinha era uma lembrança viva da mulher que amei e que já havia partido, sem que eu pudesse confessar meu amor. Incrível como o amor sempre se transfigura em vida...

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Interações

O texto dessa postagem foi criado em um momento de angústia onde acreditava que teria de romper as ligações formadas com pessoas que passei a amar muito. Entretanto, acabei percebendo que nossa interação é tão forte que nem mesmo a fissão de uma estrela vermelha teria energia suficiente para nos separar...


Que lei universal afeta as pessoas de tal maneira que elas se ligem e construam a amizade: Esse estado humano onde há compartilhamento de emoções e experiências?
A relação entre tudo no Universo é talvez tão misteriosa quanto sua própria origem. ”Onde estavas tu quando lancei os firmamentos da Terra?” foi a indagação de Deus a Jó. Não há ainda cientistas que tenham explicado de forma convincente o porquê da união das formas ditas “negativas” com as “positivas”. Os químicos interpretam a dinâmica das partículas e as leis atômicas, mas não sabem por que essas leis existem, nem por que são como são. As leis e os teoremas que ditam as  atrações entre os corpos celestes já são em suma conhecidos. 9,8m/s² é a aceleração da queda-livre na superfície da Terra. Isso se sabe. Entretanto, por que 9,8? Como a tabela periódica pode ser organizada em uma ordem numérica considerando-se os números uma criação humana e não algo natural e maleável como os átomos?
“Cargas opostas se atraem”, de fato. É uma lei Universal. É essa ligação que dita tudo no Universo. As pessoas estão vulneráveis a essa mesma força de atração. Precisamos preencher nossa valência, precisamos disso. Necessitamos ter o octeto completo, compartilhando nossos elétrons como numa grande molécula. Construímos ligações diferentes com diferentes pessoas: Cada grupo e família do seu jeito. Algumas ligações mais fortes, outras quase imperceptíveis, como a que fazemos com os desconhecidos. Acreditem... Há uma relação entre todos – Um grande aglomerado de partículas em uma solução cósmica. As crianças provavelmente devem sentir essa homogeneidade com maior facilidade. No primeiro dia de jardim de infância, criaturazinhas que jamais se viram nas suas curtas vidas interagem e se ligam quase espontaneamente. Não há nobreza e todos se aceitam.
O fato é que a Física Moderna tem muito a desvendar. Resta-nos ter fé de que essas interações tão evidentes existam.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

"Uma religião negativa: não farás isso, aquilo? De modo algum.No entanto um amor de Deus, tão profundo, tão intenso que nos aflore aos lábios a cada momento do dia. Isso é positivo e nos faz permanecer firmes apesar dos ventos e das marés."

Guy de Larigaudie - Escritor francês símbolo da juventude que morreu ainda jovem durante a Segunda Grande Guerra

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O gótico memorável de Mary Shelley


A criatura que tinha o amor como finalidade, rebelou-se contra seu criador... 
Essa é de longe uma das mais populares estórias sobre criaturas sombrias e aterrorizadoras que perseguem as pessoas e as fazem passar por experiências chocantes; E pensar que ela foi criada entre amigos que jogavam conversa fora.
Mary Shelley, a escritora inglesa responsável pelo nascimento do Frankenstein, estava jogando tempo fora com os amigos quando uma tempestade os pegou durante as férias de verão na suíça, a beira do lago de Genebra. Foi então que narrou a estória do Dr.Victor Frankenstein que, em seu laboratório em Ingolstadt, na Alemanha, deu a vida a sua criatura formada com cadáveres. Aliás, foi para a mesma região desse lago suíço que a autora diz que a Criatura fugiu e amedrontou várias pessoas.
Contam que entre os felizardos que acompanharam o desenrolar do que foi um dos maiores projetos da literatura britânica, estavam seu futuro Marido e então amante Percy Bysshe, e Lord Byron, aclamado poeta autor do “Le Prisonnier de Chillon” (O prisioneiro de Chillon) livro poético de caráter mórbido e deprimente, muito parecido – ao meu ver – com o trabalho do escritor pré-modernista brasileiro Augusto dos Anjos. Segundo se conta, Frankenstein foi uma narrativa arquitetada a partir das lembranças sombrias de um pesadelo de Mary. Alguns, de opinião mais dramática, afirmam que Frankenstein sempre assombrou a escritora. Não seria um caso a parte. Muitos artistas fantasiam seus personagens mais sombrios... Robert Louis Sterverson dizia que havia sonhado “O médico e o Monstro” antes de escrevê-lo. J.K. Rowling, por sua vez, atribui a criação dos dementadores a uma experiência depressiva. Entretanto é bom deixar claro que, apesar de manter um ambiente sombrio e gótico, um dos pontos marcantes da obra é o romance; O relacionamento entre o Dr.Victor e sua noiva Elizabeth ou mesmo a ânsia da própria criatura por uma companheira.
A tentativa do Dr. Frankenstein de criar seu próprio ser humano é frustrada e o monstro aparece como uma personificação do perigo que envolve a sede humana pelo descobrir os segredos da vida.