quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Felicidade Clandestina – Paternidade


"Às vezes a ânsia pelo amor é tão desesperadora que se acaba buscando a satisfação mesmo diante do que se sabe ser uma ilusão"

Ele tinha onze anos, como eu. Era gordo e de cabelos castanhos ondulados, olhos negros marcantes e nariz em forma de empada. Convidava-me algumas vezes por semana para se gabar do seu Playstation ou de seus skates. Entretanto seu único pertence que me alimentava da inveja, era o seu pai; Um homem atencioso que, apesar de ter consciência do espírito mesquinho e perverso do filho, ainda lhe oferecia todo o carinho e atenção que se espera de um bom pai. Tinha barbicha serrada como grama recém aparada, cabelos caminhando para o grisalho e porte saudável para sua idade. Diferente do filho não era gordo apesar de possuir desenvolvida massa muscular. Todos os dias em que ficava em sua casa - para servir de alvo de vanglorio para o garoto bolota – ele nos servia sanduíches enquanto compartilhava piadas que escutara na sua lojinha de vidrarias na rua da aurora, no Recife. 

Sentava-se conosco ,quando podia, para nos ajudar a derrotar forças alienígenas ou para sugeri insistentemente brincadeiras mais ativas – mesmo diante dos protestos de seu filho. Tornou-se terrível para mim ter de despedi-me daquele bom homem e voltar para o tormento de meu lar, onde encontraria meu pai rabugento e frio e minha mãe enfadada e depressiva. Ele me vinha em voz autoritária com críticas sobre deveres domésticos não cumpridos ou com ira diante de meu horário para chegar em casa. Eu já começara a adivinhar que ele me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Mas eu andara perdendo as forças para suportar tamanha carga...

No dia seguinte lá estava eu à porta da casa daquele garoto corpulento, com um sorriso e o coração batendo. Encontrava-me disposto a ouvir aquele garoto se exibindo em troca de alguns estantes de atenção e afeto. O trunfo da vez era um colar novo, com pingentes de prata, que estavam em moda. Suspirei por um momento, quando vi aquele homem se aproximar de nós. Ele veio diretamente a mim, acariciou meus cabelos negros desgarrados e deu uma batidinha em meu ombro. Perguntou como eu estava, com voz mansa e acolhedora, e como essa pergunta me vinha raramente. Menti, dizendo que tudo ia bem. Ele esticou o braço e abriu a mão, onde estava um colar de prata. Agradeci estupefato. O bola cheia não parecia ter se agradado de tamanha generosidade de seu pai. No colar havia apenas um pingente, em forma de bicicleta. Entrei então em um verdadeiro estado de felicidade. Passava a noite apreciando aquele objeto, que era um símbolo de uma ligação que eu sentia não ter formado com mais ninguém.  Não era mais um menino com um cordão de prata: era um homem com a sua amante. Tornou-se meu maior pertence.

Certo dia, em uma praçinha, encontrei-me com aquele que me trazia raros momentos felizes. Ele parecia satisfeito ao ver-me, abriu um sorriso acolhedor e me contraiu contra seu peito ao me envolver em seu braço afetivo. Perguntou se eu não queria acompanhá-lo em um passeio. Pegou sua bicicleta, que repousava ali perto. Adorava andar de bicicleta. Ele nos lavava em direção oposta a sua casa. Era um bairro menos movimentado do Recife, com casas precárias e rudimentares. Ele parou diante de uma casinha onde parecia não ter ninguém. Observei as poucas pessoas presentes nos olharem de forma desconfiada. Ele abriu a porta e me pediu para entrar. Em seu interior, a casa não era muito grande, nem apreciável aos olhos, mas era limpa e calma.

-Essa casa é sua Sr... – tentei obter respostas, mas ele permanecia quieto. Disse que iria ao banheiro e, passando pela porta, sumiu e ficou silencioso. Em alguns minutos voltou só de toalha, sentou-se ao meu lado no sofá e acariciou-me. Perguntou se eu queria que ele fosse meu pai. Como teria percebido tal desejo em mim eu não sabia... Talvez fosse evidente. Respondi dizendo que acharia legal. Meu coração pulava inseguro. Ele disse que isso só seria possível se eu concordasse em ficar ali por alguns dias. Suas mãos escorregavam partindo do meu rosto, passando pela minha barriga e então as cochas. Eu disse gagamente que não tinha certeza. Pressionou seu corpo contra o meu. Ele persistiu que eu ficasse e então aceitei...

Na minha ânsia de afeto, eu tentava ignorar as humilhações a que ele me submetia. Tinha consciente de que o que ele fazia comigo não era só repudiável, mas também um crime. Poderia ter escapado, mas simplesmente não o fiz... Para onde eu iria saindo De lá? Para outro tormento em casa? Às vezes a ânsia pelo amor é tão desesperadora que se acaba buscando a satisfação mesmo diante do que se sabe ser uma ilusão. Criava as mais falsas satisfações para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Minha ilusão me dominou de tal forma que por semanas ignorei a situação. Não sei se romperia aquilo por conta própria.

Fui encontrado e o homem foi preso. Pelo que entendi, houve uma denúncia anônima. Teria que reassumir meu antigo carma. Na delegacia, encontrei-me com o garoto gorducho envolvido pelos braços da mãe, chocado. E o pior para esse menino não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada do pai que tinha. A potência de perversidade de seu pai desconhecido parecia chocá-lo. Mirava-o penosamente. Agora sabia que tinha alguém com o qual poderia compartilhar tamanhas desventuras...


 Hoje, decidi doa-me para utilidade pública com um tema marcante. É quase uma crônica baseada em tantas notícias que de tempos vemos na mídia. As vezes sofrer com os outros te deixa mais forte e humano... 
Quero também deixar claro que esse conto possui uma grande contextualidade com o conto
"Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector, grande autora ucraniana 
de infância pernabucana e alma brasileira.

3 comentários:

  1. Quando comecei a ler o teu conto pensei que seria daqueles contos que tanto gosto, onde falam de memorias, que eu mesma gosto de escrever. Mas claro conforme fui lendo, com toda a atenção adivinhei quase de imediato o que ia acontecer. Infelizmente estas histórias não são raras. Escrever é uma forma de alertar. Pena que muitas pessoas se visitem não para ler mas para dizerem apenas “olá, estou aqui, visita-me“. Continua a escrever. Venho do blog da Viviana.
    fernanda

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  2. Erivelton

    Por mais que a mídia diariamente exponha em forma de notícias fatos como este da sua crônica, eu ainda fico chocada. Parece-me um ato tão sujo, desumano... aflige-me.
    Mas gostei da forma como construiu sua narrativa. Infelizmente é assim mesmo que agem estes "animais". Iludem os pequenos com falsos carinhos e presentes.
    Lutemos contra isso!

    Um abraço.

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  3. gostei do conto por proporcionar uma reflexão sobre o assunto, inclusive, apresentando aspectos da situação emocional do personagem, muito bom. Notícias sobre situações como essa, podem ser produzidas diariamente, mas, elas são tão frias quanto o crime que revelam. Dessa forma você conseguiu atingir a alma do leitor.

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