sábado, 9 de outubro de 2010

Ruídos e murmúrios


"Em homenagem à minha terra de Pernambuco"

Era verão na Suíça quando ouvi os primeiros ruídos. Já habitava aquela casa a cerca de dois anos e um bimestre. Era construída por tijolos miúdos e, em algumas partes, como o porão e a sala de estar, possuía detalhes em madeira morfada e áspera. O odor marcante de serragem úmida era um dos poucos detalhes que me davam nostalgia do Recife. Até as águas negras e sombrias dos lagos não aguçavam minha memória em relação á Veneza brasileira; Os rios recifenses tinham pontes e correntezas, e não o caráter mórbido e tedioso dos lagos. 

Em meus devaneios e mergulhos ao subconsciente enxergava como o frio torna a alma humana menos agitada. As montanhas são tão indolentes quanto sem graça. Apenas valiam a pena durante os períodos mais quentes , quando se podia escalá-las e, mesmo assim, a visão não surpreendia tanto. Se não fosse meu trabalho na editora ou meus colegas do curso de especialização, passaria todas as horas do meu dia em momentos indigestos naquela casa fadonha.

Por tudo ser tão inabalavelmente silencioso é que os sons me chamaram tanta atenção. Vinham de baixo do assoalho. Aparentemente no porão. Há tempos não ia lá. Lembro-me de como tropecei na escadaria nos primeiros dias, quando deixei cair as mangas que a Joana tinha me dado antes de viajar. Eu e a Joana nos encontramos pela última vez sobre a sombra daquela mesma mangueira de nossa infância. Ela tinha as ventas vermelhas e os olhos bem sombrios e lacrimosos.
- É pra você... mainha pediu para que meu irmão viesse pegar elas aqui hoje pela manhã.– Disse Joana, com seu jeito singelo e juvenil que tanto me cativava. Estendia uma sacola cheia de manga-espada. O Sol apalpava seu corpo sobre o vestido de algodão. Nossa! Como o Sol intenso chegou a me dar saudades...
- Espero ter uma oportunidade de chegar a te ver um pouco antes do que ando planejando. Teria de fazer algumas economias, mas acho que consigo. – Tentei consolar a angustia que sua alma tanto evidenciava. Quem dera tivesse conseguido.
 
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Desci para o porão, que exalava um cheiro podre de madeira antiga e úmida. O lugar possuía ainda alguns vestígios dos seus antigos donos. Um sofá encardido, um armário de aparência medieval e outros objetos de menor destaque: lustres quebrados, caixas, tapetes acabados e outros. Critiquei minha própria incompetência. Era evidente que ratos ali habitavam. Doravante, meses se passaram e as ratoeiras, os venenos de rato e a naftalina acabaram sendo dinheiro jogado fora. Os ruídos se intensificavam. Minha mente se corroia diante de tal mistério. Suspirei. Teria de fazer uma faxina.

Muita poeira, pó e teias de aranha. Era poeira demais para um lugar como a Suíça. Bati a vassoura nos tapetes, encaixotei todo o lixo, separei o que poderia ser revendido. Faltava retirar o armário. Com um impulso insistente conseguir remover o objeto para o mais próximo possível da escada. Voltei-me para o piso de madeira maltratada e fiquei assombrado.

Lágrimas percorreram minha face. Deixei-me cair sobre os joelhos. Como poderia ter permitido que ela morresse? Por que não fui visitá-la como prometi? Retirei as lágrimas com o dorso da mão e me aproximei mais. A pequena mangueira devia ter gozado das condições necessárias para o seu crescimento naquele buraco sobre o chão. Enquanto crescia, empurrava a madeira fina que a sufocava, provocando ruídos que se destacavam sobre o silêncio. Tinha crescido muito rápido para um ambiente tão frio. Talvez o porão fechado tenha servido como uma estufa.

A plantinha era uma lembrança viva da mulher que amei e que já havia partido, sem que eu pudesse confessar meu amor. Incrível como o amor sempre se transfigura em vida...

3 comentários:

  1. Gostei da descrição. Faz com que nos envolvamos na história e imaginemos o ambiente. E o final é totalmente inesperado e belo.

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  2. Gostei bastante do seu texto. Gostei do fato de ter colocado algunas elementos da cultura brasileira em contraste a um homem que estava longe de sua terra, mesmo guardando um amor perdido, sem volta e tendo que olhar para frente.

    Todas as caracteres tornaram o texto próximo, humano e comum, embora retrate um sentimento complexo.

    Parabéns!!

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  3. Eu adoro memorias, por isso me perdi um pouco aqui nas suas historias. Conheco a Suica e sei que as belas montanhas podem exercer varios estados de espirito em nos. Por vezes lembrancas e sentimentos vivem em coisas que nos esquecemos.

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