terça-feira, 2 de novembro de 2010

O livro dos Saltimbancos - Parte II



Para os que já viram a Parte I 
e acham que vale a pena prosseguir...


Carlito passou a se encubar em seu quarto ou na sala de leitura. Tornava-se esguio e fechado, o que o atarefado Sr.Rocha notara, mas não deu especial atenção de início, pensando tratar-se de “Coisas dos rapazes de hoje em dia... Tão auto-suficientes!”. Em um passeio ao museu, Carlito, seu pai e um amigo recente se depararam com uma tapeçaria colossal onde se viam gravuras coloridas e fragmentadas.

- Donde é este, mister Rocha? – perguntou o acompanhante.

- São tapetes da alta idade média com mosaicos bizantinos – Respondeu o garoto, gravando uma expressão de surpresa agradável na face de seu pai.

- Onde aprendeu essa, Carlos? – indagou o Sr. Rocha, orgulhoso.

- Com o Curinga – respondeu, sem dá margem para o pai pergunta-lhe quem era o tal curinga, pois correra para admirar os canivetes rudimentares.

De volta á casa, cumprimentou um acrobata, que passava as noites sobre o lustre da sala. Seus olhos eram carnudos e suculentos, rodeados por vãos escuros e sombrios, que davam a impressão de que os ossos da face recuaram. Cobria-se com trapos e uma tanga de couro leve cor de lodo. As pernas incrivelmente longas se cruzavam e percorriam o corpo, repousando sobre os ombros. Uma mulher robusta, de olhos altivos, exibia seu xale cor de âmbar, do qual não cansava de disser que era um presente de um marinheiro do oriente. Um domador de feras brincava com Sofia no berço, enquanto essa grunhia “sodadinho, sodadinho”. O felino negro enorme descansava sobre o assoalho. E, quando era sentia a mínima agitação, todos desapareciam como em um salto. O Sr. Rocha estava frustrado com  tamanho recuo para com a  realidade. Observava intrigado o beirado das portas, onde uma luz clara e fantasmagórica parecia surgir de uma fonte sobre o piso. No quarto, o Curinga e uma miúda dançarina encenavam um habilidoso teatro de sombras, sobre a luz que se propagava do livro aberto. O livro parecia em chamas, mas permanecia intacto. Era sublime.

Em uma dessas apresentações, o Coringa contava para o garoto, com o auxílio das imagens na sombra, como os hunos tinham abandonado o território da antiga Rússia e atacado ferozmente o Império Germano e o Romano. De repente, ouviram-se pancadas na porta trancada, que exigiam que Carlos a abrisse. Carlito observava a porta, receoso. O Curinga, atirando para o lado as extremidades de seu chapéu cone de várias pontas, confidenciava em secreto ao garoto.

- Sabes que se te tornares um de nós poderás ser também errante e livre. Explorar os mundos que quizeres e não apenas os que te obrigam – sussurrou o Curinga, com sua voz rouca e cativante, que ditava as palavras como se delas quisesse retirar todas as sensações do mundo – ele é só um obstáculo... – e, sorrindo aberto, desapareceu sobre a penumbra dos livros.

Durante o jantar, o Sr.Rocha  batia os dedos pesadamente sobre a mesa lixada de eucalipto , produzindo um som embaraçoso e perturbador. Seu filho comia pacientemente, ainda com o livro descansando nos joelhos, escondido sobre a tampa da mesa. Parecia não reparar o olhar intrigado de seu pai. O bebê urrava “Cadê sodadinho?” .Terminada a sobremesa de doce de abóbora, o menino saiu saltitante para o quarto, encoberto por um olhar pesado, impaciente.

- O que tem feito se recuando no seu quarto como uma ratazana assustada? – Perguntou, finalmente.

Carlito parecia perturbado, como se a pergunta ofendesse. Acabou por responder que se tratava de nada em especial.

-Deixe-me ver o livro – Ordenou seu pai, com o braço esticado, sem demonstrar emoção.

Carlito parecia receoso e perturbado. Contraiu o livro com mais firmeza sobre os dedos. O homem insistiu. Uma faísca de ira parecia se propagar pelos olhos abalados do garoto. Percebendo a recusa, o Sr.Rocha se avançou em direção ao menino, até que sentiu uma pancada gritante na nuca. Olhou para trás e não avistou nada. Estava estupefato. Carlos correu para a sala de leitura, segurando firmemente o livro. Viu o Curinga, se equilibrando sobre uma pilha de livros. Deram olhares significativos e o ser sumiu. O arfante homem penetrou na sala, batera os olhos sobre o filho, curvando a coluna para compartilharem a mesma altura.

- Vamos deixar de brincadeiras. Confie em mim. É só entreg... – Nesse momento, uma fera negra que brandia freneticamente, gelando os nervos, saltou sobre o Sr.Rocha, decompondo-se em uma espessa fumaça espectral. Foi como se o animal tivesse dilacerado o homem pelo seu interior, fazendo-o despencar em um baque expressivo. Carlito gritou energicamente. A neblina se sintetizou outra vez em um gato cor de carvão. Outro grito se ouviu da cozinha. O Curinga surgiu em seguida, com um sorrindo de satisfação, enquanto observava o corpo inerte do pesquisador. Carlito se irrompeu em fúria e disparou desesperando para a porta, em direção a cozinha. A Dona Glória estava abatia sobre o piso, morta. Ele chorou. Tinha de se livrar do livro. Inspecionou o avental da ama. Apolo, o Curinga, o observava apoiado na moldura da porta entreaberta. O ser se adiantou, ainda sorrindo pertubavelmente.  

- O que estás pensando em faz... – perguntou Curinga, quando viu o garoto acendendo o isqueiro que apanhara do bolso de Dona Glória. Carlito fez a chama dançar sobre o livro, sem se propagar. O Coringa adiantou-se e saltou sobre o guri...

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Os corpos foram encontrados por um colega de trabalho do Sr.Rocha, que desconfiara da ausência não justificado em uma reunião. O corpo do pai na sala de livros, o do bebê pálido no berço da sala e a da criada e do garoto na cozinha.Esse envolvia entre os braços um livro corpulento. A perícia não conseguiu revelar a causa mortis. Suposto envenenamento. Sem mais nenhum menbro da família vivo, a mobília, artefatos e os livros foram doados. Décadas depois, em uma zona de livros raros da Biblioteca estadual Castelo Branco, no Recife, um rapaz passeava entre as prateleiras, quando ouviu o delicioso e cativante som de uma harpa... 

3 comentários:

  1. Um pouco arrepiante, capaz de nos retirar da relidade, mas me fez lembrar de alguns fantasmas que passam por nos em determinadas idades e que parecem ganhar vida e inexplicavelmente mais poder do que a nossa vontade. Parabens pelo seu mergulho na literatuta. uma boa semana.
    fernanda

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  2. Obrig pela sua visita Fernanda,
    e por expressar o que achou do texto.

    Queria mesmo demonstrar como as fantasias e sonhos podem envolver nosso mundo de forma tal que nos tornamos carrasco de nós mesmos.
    Tem horas em que devemos sair da água para que nossos pulmões não se esqueçam como se respira o oxigênio...

    Abç.

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  3. Ola! Achei interessante a frase:
    - Tem horas em que devemos sair da água para que nossos pulmões não se esqueçam como se respira o oxigênio...
    Voltei para ler o texto, porque quando o li pela primeira vez... a sensacao foi forte.
    E`importante , sim, respirarmos para alem do mundo que muitas vezes criamos e que muito existe para alem daquilo que pensamos ser certo.
    gosto de leitura que me faca pensar...
    fernanda

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