segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A goiabeira


Era uma goiabeira antiga, exuberante e altiva. Ficava no quintal da casa dos avós de alguns de nós – embora que para toda criança velhinhos simpáticos são sempre “vó e vô”. Achava-se entre os arbustos floridos e dois muros que se encontravam juntos em ângulo reto. Seu tronco se curvava logo na base, como uma saudação solene, e então se erguia reto até desdobrar em espessos galhos, com folhas verdes e cheirosas, fartos de fruto quase todo o ano, com exceção do curto inverno, entre junho e setembro. Esbanjava simpatia, acolhendo os mais velhos em sua penumbra, servindo de descanso pra os galos, suporte de gaiolas e firmamento para ninhos de canários, sabiás ou galos-de-campina. Entretanto, ninguém usufruía mais de toda a cordialidade e praticidade da árvore do que nós.

Netos, filhos de conhecidos e sobrinhos – de todos os graus. As almas infantis eram as que extraiam o melhor que a acolhedora e velha goiabeira poderia oferecer. Ao seu derredor nos reuníamos e brincávamos de todas essas lorotas juvenis. As garotas lhe faziam de moradia e os rapazes apanhavam as pipas que seus elevados galhos extraviavam em pleno voo.

Girávamos, dando piruetas das mais audaciosas nos braços mais grossos da árvore, levando não raras vezes a pequenas quedas, logo esquecidas. Doravante, quando nos tornamos mais férteis e errantes no campo da imaginação, o encosto de seu tronco e ramos se transfigurou em um berço de singelas histórias e lendas.

Não durou muito para que a paixão pelas narrativas tomasse conta de nós e nos fizesse arquitetos das palavras. Íamos de contos de fadas bobos, de foco estritamente descritivo – ao modo dos irmãos Grimm – a contos mais bem elaborados e trabalhados, que ganhavam especial atenção, pois de início esses eram raros. Nas noites cavernosas de luar ardente e cativador, nos distraiamos com contos de terror, de detalhes grotescamente ampliados e impactantes. Enquanto se narrava a estória, os galhos rangiam abraçados pela brisa noturna  e a lua distribuía feches de luz pálida entre as folhagens volumosas.Em um compartilhamento de anseios e fobias, seguíamos a noite, tal qual Mary Shelley, a beira do lago genebrês, narrara a estória do Dr. Frankenstein para distrair seus amigos.
Sobre periódicas mordidas em goiabas verdes e suculentas, tal qual o menino lobato, entrávamos em deleite diante de narrativas cômicas, verdadeiras tragédias gregas, e dos poemas de último instante, tentando-se buscar o espírito shakespeariano; O máximo que conseguimos alcançar foram rimas primitivas e pavorosas de conteúdo confuso e por vezes constrangedor. Havia momentos em que o clima se tornava tenso, a goiabeira não fazia sombras e a narrativa saia como gemidos ininteligíveis e palavras desconexas e incoerentes.

Então seguíamos para nosso refúgio em uma sala, onde, como numa caixa preta fechada, a luz que se esgueirava pelas frestas do telhado de barro galgava na parede o reflexo invertido dos galhos mais altos. Daí a fartura era de bolo de fubá, milho, cenoura ou mandioca, canjica, biscoito e bolinhos de forma além de doces diversos onde se incluía, é claro, a goiabada. E, quando o ambiente se tornava propício para a exploração do inconsciente claricense, em bando ocorria o regresso ao conforto do fraternal do fabuloso vegetal.

Os anos passavam enquanto o tempo se refletia nas faces das crianças, que agora se enamoravam,seguiam carreiras e avançavam nos estudos, se familiarizando com a realidade. O tempo, carrasco nunca vacilante, também aprontou das suas com a velha goiabeira, que perdia o vigor, a frutividade, a coloração verde-viva e os ramos firmes. Padecia com o tronco desfalecido, folhagem rala e seca, creme-avermelhadas e já não dava mais frutos. Aos poucos não servia mais de abrigo para passarinhos, e os tatus habitavam sobre suas raízes quebradiças.

E de forma lenta e dolorosa a árvore morreu e seu tronco foi trabalhosamente desgastado por pequenos animais, até mais nada resta alem de terra sem vida. E, embora o tempo tenha surrupiado nosso recanto de suspiros e devaneios, nossas almas e nossas memórias insistem em preservar o espírito de vivacidade inspirador do ‘pé de goiaba’. A goiabeira tinha, em tempos de formosura, abraçado nossa imaginação com seus galhos malandros e sorrateiros.
Desenho de Geraldo Roberto da Silva
Saudades da infância...
Vó Lia e Vô David, amo vocês
In memória do 'pé de goiaba' e da infância querida

2 comentários:

  1. Uma narrativa generosa e cheia de lembranças que ajudaram a formar seu caráter, sua personalidade e dar forma aos seus sonhos. Uma infância invejável e que resultou nesse moço sensível e criativo que vc é.
    Adorável o texto.
    Beijos pro Vô David e Vó Lia...
    Beijokas pra vc.

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  2. Como eu entendo o seu texto! Ele se parece com alguns que tenho escrito e que guardo, mas que servem para ,lembrar e alimentar a a minha infancia em minha alma. Eu tambem tive um “vó e vô”, tambem tive um jardim, cujos perfume ainda inalo e tinha duas arvores,entre tantas outras, onde me refugiava e brincava: uma figueira e um pinheiro, que despareceram ha uma dezena de anos. ah e das flores, eu sempre sorria para os selvagens, robustos, frageis e simples malmequeres e em memoria desse tempo, nao me atrevo nem quero ter outra flor preferida.
    gostei muito deste texto.
    parabens!
    fernanda

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